Coisas do futebol: não são poucos os brasileiros que, se pudessem escolher um jogo da seleção pentacampeã do mundo para reviver, uma jogada de Pelé, Mané, Romário ou tantos outros, assinalariam uma derrota, a mais doída de todas elas, a virada para o Uruguai há exatos 70 anos, no jogo que valeu a Copa do Mundo no Maracanã.
Na inevitável comparação com a goleada sofrida recentemente, os incontáveis gols alemães no Mineirão, de semelhante só o nome da equipe perdedora. Se o 7 a 1 é deboche, vexame e traz à tona alguns itens imperdoáveis para o torcedor de futebol - como a falta de reação ao sofrer quatro gols em sete minutos numa semifinal em casa -, o Maracanazo carrega poesia, uma certa nostalgia de quem sonhava em ser grande, jornada de herói sem final feliz, busca por uma identidade tão de outro tempo que a cada ano que passa vai parecendo mais distante, pitoresca, quase de um mundo que já não existe mais.
Mas, coisas do futebol: o escracho de 2014 não martirizou seus protagonistas, pelo contrário, e ainda bem. David Luiz, por exemplo, seguiu jogando nas principais camisas da Europa, Fernandinho é reconhecidamente um dos grandes jogadores de um dos melhores times do planeta, querido pelo grande treinador de sua geração, e Felipão voltou a ser campeão brasileiro com moral na casa. Há uma marca negativa na seleção, claro, mas não dá para dizer que aquela goleada fechou portas para alguém.
Já a derrota septuagenária, se do ponto de vista futebolístico é muito mais aceitável e corriqueira, contra um time bem mais acostumado a erguer taças e que tecnicamente podia ganhar de qualquer quadro do mundo, foi cruel. Até hoje esse país precisa pedir desculpas a Barbosa, que carregou um fardo injusto e covarde, além de notoriamente racista, por um lance qualquer, comum, ainda mais quando se revê o passeio alemão de outro dia.
Em produção de memória, também são muito diferentes. O maior trauma daquele tempo forjou uma ideia de inferioridade, uma pedra no caminho da construção da autoestima, como no complexo de vira-latas cunhado por Nelson Rodrigues.
Ali, houve uma unanimidade: a do silêncio, do choque. "Vi um povo de cabeça baixa, de lágrimas nos olhos, sem fala, abandonar o Estádio Municipal como se voltasse do enterro de um pai muito amado", escreveu José Lins do Rego. Nunca a metáfora da morte pareceu tão real.
No Mineirão, não foi nocaute, mas sim uma longa derrota por pontos. Um segundo tempo que começa zero a cinco já fez as vezes de maturação. Não havia exatamente um sofrimento no apito final de um massacre consolidado com meia hora de jogo.
Isso somado a um gradual distanciamento da torcida em relação ao time nacional deu num pós-jogo frio, pouco afetuoso, quase indiferente, fortalecido por uma constrangedora cena da comissão técnica lendo uma suposta carta de uma torcedora além de um consequente 3 a 0 para a Holanda, dias depois, na mesma toada apática.
Pouco se lamentou e muito se criticou a organização e a ideia de futebol que vinham sendo tocadas por aqui. Todo dia um 7 a 1 diferente virou desabafo, não dor, para as frustrações do dia a dia.
Claro que não é exclusividade brasileira um certo deleite em lembrar os grandes tombos da vida. A memória contada é sempre melhor que a memória vivida. Como um grande poema que surge dum amor abandonado, são as derrotas que muitas vezes dão contornos às grandes lembranças.
A de 1950 ainda tem esses detalhes especiais, como o fato de ter sido tão bem tocada pelo grande time dos contadores de histórias de futebol, como o próprio Nelson ou Eduardo Galeano, registrando um tempo quase sem imagens; e também por ter envolvido um país cuja relação com a bola é respeitada em todo o mundo - o Uruguai, minúsculo, mantém sua capacidade de ter um time aguerrido, identificado, e formar jogadores que vivem o futebol intensamente, que o digam os seguidores de Lugano, Godín ou Suárez. Fica fácil saudar Andrade, Obdulio e companhia.
Dito tudo isso, segue esse encantamento pelo gol de Ghiggia, pelo dia em que bastava um empate para ganhar o maior título da história no maior estádio do mundo. Pode ser um sentimento de defesa, ou mesmo um trauma fácil de digerir depois de acontecer o que aconteceu a partir de 1958, quando o Brasil se reinventou para dar no maior jogador e em alguns dos maiores times de todos os tempos. Mas fato é que não se busca esquecer, pelo contrário. O jogo final de 1950 é um raro jogo reverenciado pelos derrotados.
E agora, nos 70 anos daquela tarde, a sensação é de uma partida eterna, em que o aniversário é só uma vírgula, uma linha a mais nessa nossa relação viva, intensa, com a maior derrota já vista. Ainda que logo não haverá mais ninguém que esteve no maior silêncio já ouvido, o Maracanazo parece carregado para sempre, de rodada em rodada, de bar em bar, de arquibancada em arquibancada, onde houver um torcedor no Brasil.