O Barcelona gosta de se apresentar ao mundo vendendo a ideia de que é “mais que um clube” e que possui um DNA, uma identidade tanto na forma de jogar como em sua postura extracampo. Contudo, por mais que este discurso mostre uma unidade, a verdade é que existem duas correntes antagônicas de pensamento nos corredores do Camp Nou. Elas foram escancaradas em um momento de ruptura, ainda na época em que Johan Cruyff era treinador, e de certa forma estão inseridas no contexto que resultou no pedido de Lionel Messi para deixar o Barça em busca de outro lugar.
De um lado está o Nuñismo, expressão cunhada desta forma por representar os pensamentos e legado de Josep Lluís Nuñez, presidente do Barcelona entre 1978 e 2000. Do outro está o Cruyffismo, cuja explicação dispensa comentários: é por causa de Johan Cruyff. O primeiro é visto como pragmático e conservador, enquanto o segundo tem para si uma identificação revolucionária e inovativa.
Como Cruyff explica a divisão política no Barça
Johan Cruyff não fundou o FC Barcelona, mas é como se tivesse feito isso. Existe um antes-e-depois de Cruyff no Camp Nou: como jogador, entre 1973 e 1978, ele resgatou o orgulho ferido dos catalães em meio à sangrenta ditadura de Francisco Franco e se tornou uma bandeira tanto do Barça quanto da Catalunha. Mas foi como treinador, entre 1988 e 1996, que a sua amadurecida filosofia de jogo gerou títulos marcantes e ajudou a elevar mundialmente o barcelonismo.
A grande ironia é que o homem responsável por contratar Cruyff como treinador foi Josep Lluís Nuñez, o mesmo que anos depois se tornaria um dos maiores inimigos do holandês. Nuñez e Cruyff não concordavam em muita coisa desde o início, e tinham muitas ideias contrárias, mas conseguiram trabalhar juntos. Com Nuñez na cadeira da presidência e Cruyff na área técnica, o Barça enfim conquistou sua tão sonhada Champions League e a equipe, que ficou na história com o apelido de “Time dos Sonhos” (Dream Team), ainda colecionou um total de 11 taças.
Mas, como é normal no futebol, o desgaste de anos de convivência – especialmente quando levamos em consideração a personalidade forte de Cruyff e suas exigências – deteriorou as relações. A lenda holandesa passou a não se dar muito bem com alguns jogadores, mas as diferenças que ficaram mais acentuadas foram com Nuñez.
A goleada por 4 a 0 sofrida contra o Milan, na final da Champions League em 1994, foi o ponto de partida para o fim da era do Dream Team montado por Cruyff – que fez questão de exaltar tanto o favoritismo de sua equipe antes de a bola rolar, que passou até mesmo a sensação de soberba de acordo com relatos da época. Na temporada seguinte, a relação do holandês com Nuñez desceu tanto o nível a ponto de Cruyff ser acusado de nepotismo – por escalar o genro Jesús Mariano Angoy no gol, e o filho Jordi no ataque.
Segundo o livro Fear and Loathing in La Liga, do jornalista inglês Sid Lowe, a demissão de Cruyff, em 1996, foi acompanhada de gritos, xingamentos e até tentativas de agressão. Já fora do Barça, o holandês entrou na Justiça alegando quebra de contrato e a relação institucional com o clube ficou estremecida. Nuñez exerceu sua presidência até 2000, seguido por Joan Gaspart, que era seu vice-presidente, e o Barcelona não conseguiu ser tão vitorioso quanto na época em que Johan era o técnico.
O Cruyffismo só foi voltar institucionalmente ao clube com a eleição de Joan Laporta, em 2003, em um período marcado pela contratação de Ronaldinho Gaúcho e pela estreia de um jovem Lionel Messi. Em seu segundo mandato, entre 2006 e 2010, Laporta apostou em Pep Guardiola para ser o treinador e, graças a uma evolução ao estilo de Cruyff, o Barça alçou os maiores voos de sua história.
Rosell, Bartomeu e a volta do Nuñismo
Quando Sandro Rosell foi eleito presidente do Barcelona, em 2010, Guardiola ainda era o treinador e conquistaria uma nova Champions League (a quarta na história do clube) em 2011. Mas administrativamente as coisas já começavam a mudar. Por decisão da diretoria, Johan Cruyff, que voltara a ter sua imagem cultuada na época de Laporta, perdeu o status de presidente honorário do Barça e outros adversários políticos foram sendo perseguidos. A figura de Cruyff voltava a ser atacada. Guardiola deixou o clube em 2012, tendo como um dos tantos motivos as desavenças com a diretoria e, mais especificamente, Rosell, que revelou-se um Nuñista.
Sandro Rosell renunciou ao cargo em 2014, após um escândalo envolvendo irregularidades na contratação de Neymar, e chegou a ser até preso por outras questões. Josep Maria Bartomeu, seu então vice-presidente, assumiu a cadeira principal e foi eleito em 2015 na esteira da última conquista europeia do Barcelona – com um time já mais longe das ideias Cruyffistas de jogo, com futebol mais direto sob o comando de Luís Enrique e contando com o brilho da trinca de ataque Messi/Suárez/Neymar.
Bartomeu, o relaxamento geral e a saída de Messi
Bartomeu, que em sua juventude tentou ser jogador de basquete, não conseguiu manter o Barcelona jogando em alto nível: as revelações das categorias de base passaram a ter cada vez menos espaço diante de alguns medalhões, e contratações sem muito sentido foram feitas. A perda de Neymar, comprado pelo PSG, representou um baque forte sob o ponto de vista técnico, e resultados humilhantes – como as eliminações para Roma, Liverpool e, acima de tudo a goleada por 8 a 2 sofrida contra o Bayern – cobraram sua conta: Messi, o maior craque da história do clube, pediu para sair.
Em conversa com a Goal Brasil, para explicar um pouco destas grandes diferenças políticas que existem na história do Barcelona, o jornalista catalão Joaquín Piera, que escreve para o Sport, indicou que “o Cruyffismo e o Nuñismo são duas famílias diferentes de entendimento de gestão”.
Nuñez morreu em 2018, enquanto Cruyff nos deixou dois anos antes. As desavenças e diferenças entre os que defendem um e outro, entretanto, seguem bem vivas.
Hoje o cenário é de muitas dúvidas, mas uma certeza: a administração de Bartomeu, um Nuñista, entra para a história provavelmente como a pior no clube em todos os tempos. Seja pela péssima tomada de decisões e pelo acúmulo de decepções na esfera europeia, mas acima de tudo por ter conseguido fazer Lionel Messi, vitorioso com e sem o Cruyffismo no Barcelona, querer deixar o clube.