De todos os carrascos das Copas do Mundo, nenhum tem um impacto tão duradouro quanto Paolo Rossi, autor dos três gols da vitória italiana sobre o Brasil na Copa de 1982, na Espanha, e protagonista do jogo que persegue qualquer debate sobre o futebol brasileiro desde aquela segunda-feira no saudoso Estádio Sarriá.
O trauma foi imediato. No Centro de São Paulo, a tristeza era tamanha que Raffaele Rossi, diretor de cinema de sobrenome ironicamente homônimo ao do atacante, resolveu antecipar a estreia daquele que seria o primeiro filme com cenas de sexo explícito no cinema brasileiro. Na terça-feira o país acordou chorando a eliminação no Mundial, e na quarta Coisas Eróticas era lançado no Cine Windsor, na avenida Ipiranga, com filas gigantescas. Quando a Itália bateu campeã do mundo, milhares de pessoas já tinham enchido as sete sessões diárias na histórica sala paulistana.
Se o cinema serviu de remédio, logo os torcedores puderam rever seus grandes ídolos nos estádios brasileiros, já que os campeonatos estaduais tinham bola rolando ali mesmo, em julho, colados no Mundial. Mas a ferida seguiu aberta.
Os gols de Paolo Rossi, que morreu aos 64 anos nesta quarta-feira, 9 de dezembro, vítima de um câncer no pulmão, seguem ecoando. Quem viveu a tragédia do Sarriá — não é meu caso, mas pude atestar com os mais velhos —, tem naquela derrota a maior referência para as teorias da bola compartilhadas de bar em bar.
Porque dentre as clássicas figuras de uma hipotética grande reflexão sobre o futebol brasileiro, há algumas que estão ligadas àquela partida de forma incontestável. Um que considera que ali morreu o futebol-arte, ainda que não seja tão simples explicar o que isso significa; outro que enxerga na vitória italiana uma justificativa para uma postura que priorize o resultado; há o que adora discutir a escolha entre jogar bonito ou vencer, como se fossem extremos opostos; tem quem questione o título da Copa de 1994 sob a sombra da derrota brasileira de doze anos antes; existe até o personagem que garante que, quando viu pela televisão o terceiro gol sofrido em Barcelona, largou o futebol. E tantas outras.
Exageros à parte, a influência do Sarriá é inegável, o que faz de Paolo Rossi uma figura fundamental para se contar a história da seleção. É impossível dissociar as impressões sobre a camisa amarela daquele sonho interrompido, da frustração de uma Copa perdida quando um time nacional conseguiu algo tão raro, a completa comunhão com a torcida e até a crítica. O Brasil de 1982 ficou no imaginário como o time alto-astral, com todas as condicionantes que até hoje são usadas como referências de uma equipe supostamente ideal. Um jogo criativo, ofensivo, alegre, em ritmo de samba e cheio das combinações e tabelas tão queridas pelo gosto brasileiro. Um elenco de craques, uma turma que sabia tratar a bola.
Mas que perdeu. E desde então convive com essa contradição, pergunta pronta para os todos os técnicos, entre a referência estética, a projeção de um time dos sonhos, e a dura realidade do resultado cravado para a eternidade. Futebol se faz de memória, mas qual delas? A do encanto ou a dos troféus? Ambas. Enquanto muitas vezes essa discussão seguiu para um beco sem saída, as derrotas estavam lá, forjando torcedores e moldando as impressões sobre o jogo.
Nesse sentido, o Brasil x Itália de quase 40 anos atrás é incomparável. Ele é a régua, puxado por conveniência e que cabe para medir todo e qualquer debate travado na mesa do futebol brasileiro até hoje. Mais que o Maracanaço, traumático, claro, mas de certa forma com resposta em forma de Pelé e tricampeonato algumas Copas depois. Mais que o 7 a 1, esse ainda meio torto, recente, em tempo de ser tratado com frescor. Mais que qualquer lance de Zidane, Kanu, De Bruyne ou outros vilões de derrotas marcantes. Na prateleira daquilo que poderia ter sido, o time de Falcão, Sócrates e Zico tem um lugar central. Por consequência, também estão lá os gols de Paolo Rossi, personagem do elenco principal que dá no filme do que somos hoje.