Em 1952, um ex-prisioneiro de guerra retornava à Alemanha para visitar a família. O seu pai havia fugido de casa, o irmão estava desempregado e a mãe não apresentava as melhores condições de saúde. Bert Trautmann tinha aptidão para esportes desde criança, mas sua primeira grande condecoração havia sido a Cruz de Ferro, pela participação nas batalhas realizadas no front ucraniano na época em que era paraquedista do exército nazista.
Naquele momento, entretanto, Bert Trautmann já havia vencido outra de suas mais difíceis batalhas: provar a boa parte dos ingleses o seu valor, seja como goleiro ou pessoa, pouco após o término da Segunda Guerra Mundial. Em 1949, os torcedores do Manchester City protestaram e ameaçaram boicotes depois que o clube o contratou. Três anos depois, os Citizens rejeitaram absolutamente uma oferta tentadora que o Schalke fez por alguém que já era ídolo.
É um dos episódios mais marcantes entre os clubes, que se enfrentam nesta quarta-feira (20), no jogo de ida das oitavas de final da Champions League 2018-19. No total, foram três partidas oficiais entre os Sky Blues ingleses e os Azuis Reais de Gelsenkirchen. A última delas, pela fase de grupos da Europa League na temporada 2008-09, não foi lá tão importante. Já em 1970 os mancunianos levaram a melhor nas semifinais da já extinta Recopa Europeia, torneio de prestígio na época que seria conquistado pelo City naquele ano.
De vilão a herói
Antes de chegar ao Manchester City, Trautmann estava na mira de outros clubes ingleses após demonstrar excelente competência para evitar gols pelo minúsculo St Helens Town. Aos entendíveis boicotes na sua chegada, o alemão respondeu com diálogo e paciência ao entender que inicialmente nem todos o queriam por ali. Explicou a condição humilde de sua família, que via no alistamento militar uma salvação econômica, e posteriormente no medo de represália por parte dos nazistas em uma eventual saída, como os motivos que o levaram até aquele caminho.
21 de enero de 2019
Atitudes inesperados também surgiram para aliviar os ânimos. Além de um rabino da comunidade judaica ter intercedido em seu favor, o capitão dos Citizens à época, Eric Westwood, demonstrou apoio fundamental. Veterano da batalha da Normandia, o lateral afirmou que naquele vestiário não existiriam inimigos. Trautmann respondeu com excelentes exibições Inglaterra afora e se era vaiado e xingado quando saía de Manchester, muitas vezes o ódio se transformava em admiração após o apito final.
A oferta tentadora
A fama de Trautmann já havia chegado à Alemanha quando ele resolveu, após anos, visitar a sua família em Bremen. O Colônia foi o primeiro a lhe procurar quando soube de sua visita, mas foi o Schalke quem apareceu com maior força. A vontade de retornar ao país-natal tinha como motivo exclusivamente a sua família, mas Bert não chegou a comentar sobre a sondagem quando retornou à Inglaterra. Respeitou o seu contrato e seguiu treinando até que os Azuis Reais apresentaram uma proposta excelente, levando em consideração o amadorismo que ainda existia no futebol alemão.
Em uma carta aberta, publicada no Manchester Evening Chronicle, o goleiro deixou claro a sua vontade: “A minha única esperança é que depois, depois de lerem minha história, vocês entendam por que eu estou voltando (...) Eu quero voltar por causa de uma promessa que fiz para a aminha mãe na última vez que a encontrei”, escreveu, destacando também o quão chocado ficou ao ver a sua progenitora. “Sinceramente, sinto que é meu dever como filho é ajudar a minha mãe. Afinal de contas, eu a vi apenas três vezes nos últimos 12 anos e tenho medo de que a sua saúde não aguente a não ser que eu retorne”.
A reviravolta inesperada foi que o seu irmão conseguiu um emprego quando Trautmann estava mais perto de oficializar a sua saída e o goleiro pôde permanecer, ao lado de sua família já inglesa, vestindo a camisa do Manchester City. E a decisão se mostrou acertada, pois anos depois o arqueiro protagonizaria um momento épico e sempre lembrado na história do clube.
Vice-campeão da FA Cup em 1955, quando o City foi derrotado por 3 a 1 pelo Newcastle na decisão, a equipe azul de Manchester teve uma nova chance de levantar a taça na temporada seguinte. O adversário em Wembley era o Birmingham, que dificultou a vida dos Citizens. Na metade do segundo tempo, o duelo estava empatado em 1 a 1 antes do time de Trautmann voltar a ficar na frente do placar, com um 3 a 1 ainda incerto. Nos 15 minutos finais, após disputa com um atacante adversário, o goleiro lesionou seriamente o pescoço e mesmo assim ficou em campo até o apito final para conquistar o seu único título e escrever um verdadeiro épico do futebol inglês. Um exame realizado três dias depois mostrou que Bert havia quebrado um osso do pescoço.
Em 2004, Trautmann recebeu o título da Ordem do Império Britânico por promover o futebol anglo-saxão. Desde então rodava o mundo dando lições sobre esporte e a vida. Em entrevista concedida em 2010, o goleiro disse que “viajar é a melhor forma de educação. Nos ensina sobre tolerância e compreensão”. Um grande exemplo de mudança, que deixou sua marca, principalmente, no coração de todos os torcedores do City. Um carinho que talvez pudesse ser esquecido se o destino não lhe tivesse dado a desculpa para não assinar pelo Schalke.
Bert Trautmann morreu em 2013, aos 89 anos, e sua história virou um filme com previsão de lançamento para março.
6 de febrero de 2019