O futebol é um triturador de atletas. Simples assim. Não há ex-jogador que não leve para a aposentadoria a dor no joelho, das costas ou do quadril. O efeito que o esporte exerce sobre seus praticantes pode levar a um sofrimento real, principalmente com o passar do tempo. No caso atual, a COVID-19 parou a bola em boa parte do mundo. Agora, é hora de voltar e enfrentar a reação de um corpo que volta de férias inesperadas para o dia a dia de treinos e partidas. Impactos, acelerações, paradas, troca de direção, saltos, batidas, quedas, torções, flexões, solavancos. Tudo isso é um esforço extra enfrentado por jogadores após dois meses de interrupção obrigatória por causa do coronavírus.
Os profissionais das grandes ligas (exceto os da Ligue 1, que foi totalmente cancelada e que coroaram o PSG como campeão) enfrentam uma situação incomum: a de completar uma espécie de pré-temporada na reta final da campanha. Os jogadores passaram dois meses em suas casas, treinando com instruções de seus preparadores e em espaços reduzidos na maioria dos casos. Os movimentos e contatos com a bola foram limitados, com exercícios muito específicos e concretos que são muito distantes da prática total à qual estava acostumados.
Especialistas médicos, traumatologistas, psicólogos e nutricionistas alertaram para o risco de lesões e afirmam que a saúde está ameaçada se as competições retornarem sem uma preparação completa e eficaz. No protocolo que a LaLiga enviou aos clubes com as regras a seguir para o treinamento, afirma-se que é "recomendado um mínimo de 15 dias" de trabalho para retornar à competição. Há divergências de opiniões a respeito. A RFEF afirmou que o mínimo necessário era um mês; Julen Lopetegui, treinador do Sevilla, solicitou cinco semanas. "Com quatro ou cinco dias, os jogadores de futebol podem estar prontos", disse o treinador físico do Real Betis, Marcos Álvarez, que parece ser o mais otimista. Se o Campeonato Espanhol retornar em 12 de junho, como seu presidente pretende, os prazos são de quatro ou cinco semanas, pois nem todas as equipes retornaram ao mesmo tempo. O governo espanhol permitiu treinar individualmente a partir de 4 de maio. Enquanto isso, a Alemanha é a primeira grande liga a provar os efeitos do retorno. E já tivemos uma lesão logo no aquecimento: Reyna, do Borussia Dortmund, se lesionou e precisou ser substitúido por Hazard. Uma Bundesliga que volta como um verdadeiro metrônomo.
No entanto, supõe-se que a volta possa levar a problemas, além da exposição ao contágio que as autoridades tentam minimizar. Samuel Umtiti, zagueiro do Barcelona, se lesionou logo após começar a treinar. "É muito raro o dia em que você treina sem sentir nenhum incômodo", defende Fernando Morientes. "Quanto mais velho você é, mais custa se recuperar e se preparar", acrescenta Santi Cañizares.
Nessa mistura perigosa, agora incluimos um ingrediente inesperado até algumas semanas atrás: o recesso forçado pelas medidas de confinamento adotadas para impedir o avanço da pandemia do COVID-19. Vai ser difícil conseguir o que José Mourinho chamou de "alta competitiva". O corpo de um jogador de futebol é uma máquina que precisa de um trabalho importante de ajustar e aquecer os motores para começar a trabalhar em plena capacidade. Não é necessário ir muito longe para encontrar o caso de uma equipe que sente a falta de uma pré-temporada correta: Piqué e Messi atribuíram o início irregular da temporada às viagens inesgotáveis e à falta de sessões de treinamento. Nos seis primeiros jogos, houve uma derrota para o Athletic Bilbao, empate com o Osasuna e Borussia, e uma derrota para o Granada.
Lesões frequentes
Quais áreas devem ser tratadas com cuidado? Quais partes do corpo são mais afetadas? Para o estudo, o robusto banco de dados ProFootballDB, que também coleta informações sobre lesões, entrou em ação. A amostra foi limitada a um setor populacional com um ELO superior a 75 e que tenha competido nas cinco principais ligas da Europa (Espanha, Inglaterra, Alemanha, Itália e França) nos últimos cinco anos. Isso nos dá um número de 685 jogadores de futebol e um número preciso de contratempos físicos, um total de 4.731. Em outras palavras: as 4.731 lesões sofridas por 685 jogadores de alto nível nos últimos cinco anos foram estudadas.
Alguns cálculos confirmam a extrema dureza a que esses atletas estão submetidos. Esses 685 jogadores acumulam ao longo desses cinco anos 113.332 dias afastados dos gramados. Isso significa... mais de 310 anos! Resumindo, cada profissional teve uma média de sete lesões (6,9) nas cinco temporadas, com duração de quase 24 dias cada (23,95). Um jogador de futebol acumula uma média de 165,44 dias na enfermaria, o que equivale a aproximadamente cinco meses e meio.
Este manual não pretende ser uma bíblia do futebol, mas se aproxima com os dados coletados da resposta real que os profissionais oferecem ao impacto que o esporte de elite e a alta intensidade têm sobre eles. A inclusão da ELO também permite desenhar o mapa das principais lesões sofridas pelos principais jogadores do mundo. Por quê? Porque a ELO é o valor que determina o nível de um jogador. É calculado considerando várias variáveis: dificuldade das partidas, rivais, competições, comportamentos em momentos de pressão, gols e assistências, forma física... Quanto maior a ELO, melhor o atleta. Também deve-se ter em conta que nem todos os traumas e lesões físicas são divulgados devido à sua leveza, da mesma forma que existem clubes que não emitem relatórios médicos por conta da confidencialidade.
Com a amostra já disponível, é a vez de identificar as lesões mais comuns nos jogadores. As coxas são as que mais sofrem, com 30,4% das lesões; o joelho concentra 12,77% dos casos; o tornozelo, 11,52%; a virilha, 7,8%; o pé, 5,6%, e a panturrilha, 5,31%. Os problemas relacionados à saúde (doenças, infecções virais, gastroenterite etc.) ocupam 4,97%, enquanto os golpes e contusões atingem 4,61%, as lesões na cabeça 3,09% e quadril, 2,96%.
Os casos que mais se repetem têm durações diferentes, conforme o esperado. Os 30,4% das lesões que correspondem às coxas representam 26,66% dos dias de ausência, somando os períodos de convalescença e recuperação desses jogadores. O joelho representa 12,77% dos problemas físicos dos profissionais, mas ao mesmo tempo concentra 21,32% das ausências. Se confirma que as condições nesta articulação são mais graves que as mencionadas anteriormente. Embora se possa concluir que o principal castigo que um jogador enfrenta é muscular.
Tipologia de danos
Cada área do corpo tem seus próprios comportamentos, diagnósticos e tratamentos. Não existe uma única lesão no joelho, assim como não há uma única dor nas coxas.
A parte traseira das coxas, conhecida como isquiotibiais, causa verdadeiras dores de cabeça. Os músculos isquiotibiais estão localizados na região superior e posterior da coxa (semimembrana, semitendíneo e bíceps femoral). Os danos nesse grupo muscular ocorrem 556 vezes e representam 11,75% das lesões coletadas pelo estudo. Quanto aos dias de ausência, concentra 12,33%, de um total de 13.970. Um bom exemplo, precisamente por ser um jogador que quase não visita a enfermaria é Leo Messi. O argentino teve pesadelos com os ísquios várias vezes ao longo de sua carreira. Sua função de extensão e flexão do joelho é vital em um esporte tão dinâmico quanto o futebol, e as arrancadas o coloca em risco. O quadríceps representa a segunda parte mais afetada, com 551 ocorrências, 11,65% e 10,33% dos períodos registrados de ausência, até 11.704 dias.
O futebol gera choques constantes no jogador, e o joelho sofre desde muito cedo, devido ao seu próprio trabalho intrínseco com o corpo. A tração, em alta velocidade por muitos trechos, é permanente. E isso sem contar os golpes e os imprevistos. O esporte compromete claramente a maior articulação do corpo. Contusões, torções, entorses, luxações ou lesões no joelho do tipo trauma são as mais comuns. 472 foram registradas, o que representa 9,98% do total. Isso se traduz em uma convalescença cumulativa de 13.717 dias, 12,10%.
E o temido rompimento do ligamento cruzado? Apenas 36 rompimentos foram detectados, mas cada um deles leva a 222 dias fora do campo. Esse mal gera cerca de 6% dos dias de licença médica registrados. Isso dá uma ideia de sua complexidade e seriedade. Não são poucos os profissionais que não retornaram no mesmo nível depois de sofrerem o amaldiçoado rompimento.
Em um estudo anterior do ProFootballDB, estimou-se que quase 25% dos períodos de ausência devido a problemas físicos foram motivados por diferentes patologias do joelho. Essa porcentagem agora cai para 21,32%. Essa redução tem a ver com o alto nível de jogadores no relatório, já que no anterior não houve suporte do ELO. Quanto mais 'top', quanto maior o cuidado que um profissional desfruta graças ao seu clube, menor o risco de lesões graves. Também conta a genética privilegiada e a ética do trabalho, veja Leo Messi e Cristiano Ronaldo, quase sempre disponíveis e iniciantes em campanhas de 60 a 70 jogos. Alimentação, instalações... Tudo isso conta.
Embora a ruptura do ligamento cruzado não seja a pior coisa que poderia acontecer a um jogador: a fratura da tíbia e da fíbula implica, em média, 234 dias de licença médica. Após o problema do cruzado, a ruptura do tendão de Aquiles requer um período de recuperação de 178 dias; patologias cardíacas, de 130; fratura no tornozelo, 123 dias; e pubalgia, 92.
Treinadores físicos e psicólogos, tão importantes quanto o jogador
O trabalho do preparador físico será essencial. O intervalo é um contratempo inevitável. Lopetegui lembrou em um evento na NFL em 2011: "Na NFL norte-americana, em 2011, uma paralisação de três meses devido a um problema de trabalho levou ao retorno de 12 rupturas no tendão de Aquiles no primeiro mês de competição, quando havia em média cinco ao longo da temporada". As orientações e o planejamento esportivo, futebolístico e nutricional são obviamente aspectos fundamentais para um retorno com qualidade. No Real Madrid, eles confiam, por exemplo, na experiência de Gregory Dupont, que é reconhecido por saber como colocar seu time em um ponto ideal nos últimos meses da campanha, especialmente na Champions League.
"Se esta minitemporada não for realizada, e dependendo do tempo em que estiver parado, o risco de lesão aumentará muito", alertou Juan José García Cota, médico do Celta e da Seleção. O aspecto psicológico também tem um peso considerável. "O bom dos atletas é que eles vês sendo aconselhados por seus treinadores, médicos e fisioterapeutas e a maioria conseguiu se exercitar de uma maneira ou de outra. Mas nesse cenário de confinamento, a parte psicológica importa muito, se eles dormiram mal ou ficaram nervosos, porque pode influenciar o nível imunológico. Quem voltar a competir antes terá maior risco de lesão", declarou o traumatologista David López Capapé, diretor da Biclinic e cirurgião da clínica CEMTRO, à revista 'Marca'.
"A mente do atleta precisa estar totalmente focada no que está fazendo para evitar lesões. Existem muitos estudos sobre o impacto da ansiedade e do estresse em lesões esportivas, e a incerteza gerada por essa pandemia está afetando a todos nós. Os jogadores de futebol também sofrem", alerta o Dr. Guido Castaldini, traumatologista especialista em cirurgia astroscópica.
O futebol após a COVID-19, uma oportunidade
Jogadores com lesões importantes como Eden Hazard, Luis Suárez e Marco Asensio terão a oportunidade de retomar a competição quando a mesma voltar. Asensio tinha bastante claro sobre seu retorno depois de superar seu problema no joelho e a pandemia atrasou seu retorno. No caso do belga e do uruguaio, assumiu-se que eles não poderiam terminar a temporada. Hazard lesionou a fíbula da perna direita e Suárez teve que se submeter a uma cirurgia no menisco do joelho direito. O Barcelona e o Real comemoram a possibilidade de contar com mais jogadores, como o resto dos clubes que já lamentavam as perdas até a conclusão.
Uma incógnita chamada Champions League
O fato de a Liga dos Campeões ser adiada para agosto dará a chance para as equipes chegarem com mais experiência. Os técnicos consideram que sempre no início do campeonato a igualdade entre os clubes é mais evidente, pois suas formas são comparáveis quando ninguém ainda atingiu seu nível mais alto e os jogadores não conseguem tal qualidade alta tão facilmente. E aparecem incógnitas também com as equipes francesas e sua resposta competitiva, já que o PSG não disputaria nenhuma partida oficial até então, a mesma situação para o Olympique de Lyon. Eles chegariam mais descansados, mas com um ritmo mais lento que seus concorrentes. O PSG já está nas quartas de final após a eliminação do Borussia Dortmund, mas a equipe de Rudi García ainda deve visitar Turim após a vitória por 1 x 0 na partida de ida contra a Juventus. Em 27 de maio, a UEFA decidirá o que acontecerá com o seu grande torneio por excelência. Estamos todos de olho.