Richarlison sempre foi tímido. Entrevistas, microfones e câmeras ainda são obstáculos a superar. Mas o sucesso na Premier League e na seleção deram-lhe a confiança - e a visibilidade - necessária para soltar-se mais, principalmente fora de campo, e despontar hoje como a principal voz do futebol brasileiro.
Aos 23 anos, o atacante do Everton tomou posições públicas em várias questões sociopolíticas nos últimos meses. Cobrou justiça e respostas nos incêndios no Pantanal, no estupro da influencer Mariana Ferrer e nas mortes de dois negros: o jovem João Pedro, assassinado pela polícia no Rio de Janeiro, e o autônomo João Alberto Silveira, brutalmente espancado por seguranças brancos em um Carrefour de Porto Alegre.
Mais recentemente, aproveitou os holofotes no pós-jogo contra o Uruguai, nas Eliminatórias, para pedir explicações às autoridades pela falta de energia no Amapá. Usou especialmente o gol marcado com a camisa amarelinha na vitória por 2 a 0 em Montevidéu para “exigir luz para um povo que está sofrendo”.
“Não houve um ‘clique’ em especial ou qualquer mudança significativa de postura. Ele, aos poucos, foi ganhando confiança e então começou a colocar para fora os valores que sempre carregou”, confidenciou uma pessoa muita próxima ao jogador.
Boa parte do atual lado crítico de Richarlison tem origem nas “batalhas de rap”. Aprendeu logo na infância a usar as palavras para lidar com as duras lições da vida. As injustiças também. Quando era criança, raramente dispensava um duelo de improviso de rimas.
A verdade é que a trajetória em Nova Venécia, no Espírito Santo, explica por si só tamanha preocupação do atacante com o próximo. Passou fome, precisou trabalhar logo cedo vendendo picolé na rua para ajudar a mãe Vera Lúcia, perdeu amigos para o crime e chegou até a ter uma arma apontada à cabeça - foi confundido com um traficante.
Apesar de apaixonado por rap e ter trabalhado em outros serviços, entre eles num lavo-rápido, o Pombo, como também é conhecido, estava mesmo predestinado ao futebol, onde acabou por construir uma “família” a partir do momento que virou profissional. Abel Braga é o “pai” e Marco Silva é o “padrinho”.
“Todas as atividades dele [Richarlison], diariamente, eram com a bola nas mãos. Não largava. Ali dava para entender que ele queria dizer para si próprio ou passar para nós a seguinte mensagem: ‘A solução da minha vida é o futebol, é essa bola. Preciso tratá-la com carinho, é o meu grande símbolo’. Ele demonstrava isso sempre. Era um forte indício que, visto todas as dificuldades sofridas nos tempos de criança, ele precisava do futebol”, recordou Abel, que comandou o Fluminense em 2017 e teve papel fundamental na maior polêmica da carreira do jovem atacante, quando pediu para não jogar por causa de uma proposta do Palmeiras.
“É um garoto espetacular, só tem pureza no coração. Estou muito orgulhoso de vê-lo defender várias causas sociais. Conseguiu chegar num momento de ter uma voz que se faz escutar. Daquilo que tenho visto na nossa história recente, ele é o jogador com voz mais ativa, que busca mudanças urgentes. Virou o nosso embaixador na Europa”, completou o agora treinador do Internacional.
Richarlison chegou ao Velho Continente no segundo semestre de 2017. Mesmo com um pé e meio no Ajax, acabou optando pelo modesto Watford, então postulante ao rebaixamento na Premier League. A mudança repentina de rumo foi orquestrada pelo português Marco Silva, que, na temporada seguinte, fez questão de levá-lo junto para o Everton, onde hoje é uma das referências do time comandado pelo italiano Carlo Ancelotti.
“Não é segredo para ninguém a evolução que ele teve, dentro e fora de campo. Foi um prazer ter uma importância na carreira dele, temos uma relação que vai durar para sempre. A adaptação não foi fácil, porque era muito tímido. Aliás, continua sendo muito tímido. Explicamos a importância de desenvolver a língua inglesa. Apesar das dificuldades, aceitou e está cada vez mais integrado ao país”, explicou o treinador português, hoje livre no mercado.
“É um menino muito respeitador. Já atingiu altos patamares, mas vai atingir outros ainda maiores. Ele não facilita nos termos profissionais, está sempre no topo. Aprende e trabalha com muita humildade. Sinto que confia cada vez mais em si mesmo, por isso começou a expor as suas opiniões. O que ele faz fora de campo é exemplo daquilo que faz dentro, briga pelos valores que são fundamentais. Não esquece das pessoas desfavorecidas, porque ele já esteve do outro lado”, reforçou.
“Irmão mais novo” do ex-goleiro Gomes, com quem jogou no Watford, Richarlison é estimulado pelo Everton a marcar presença em ações sociais, preferencialmente com jovens. Não que fosse preciso um pedido do clube, uma vez que o atacante é apaixonado por crianças. Participa com frequência de servições comunitários, muitas vezes em hospitais, e tem consigo a seguinte regra: atender todos os fãs mirins na saída do Estádio Goodison Park, independentemente do resultado do jogo.
No Brasil, o atacante comprou casa para praticamente todos os parentes mais próximos e está perto de lançar um centro de treinamento na cidade natal, além de, somente em 2020, já ter distribuído cerca de 1000 cestas básicas na região. Isso, claro, sem falar de ações individualizadas, que geralmente não são divulgadas, como, por exemplo, ajudar pais de crianças que estão em tratamento de câncer em Barretos, no interior de São Paulo.
Em maio deste ano, Richarlison firmou parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e passou a ser o rosto da campanha “Tabelinha de Craque” (confira o projeto clicando aqui), que visa arrecadar dinheiro (R$ 5 milhões até o momento) para realizar pesquisas avançadas na luta contra doenças, sobretudo a Covid-19. Desde então, ainda mais agora com as defesas públicas em casos midiáticos, passou a ser alvo constante de políticos.
“Tem muita gente no mundo da política querendo pegar carona, pelo menos 50 políticos já foram atrás dele nas últimas semanas. Ele faz questão de manter-se apartidário. Tem luz própria para defender o que bem entender”, destacou um grande amigo do jogador.
Entre videogame, séries, aulas de inglês, treinos e jogos, Richarlison tenta diariamente cumprir uma antiga promessa que fez a si próprio, quando viu o pai Antônio, na época sofrendo de depressão, ser humilhado por um fazendeiro, que não queria vê-los pescando na sua propriedade: lutar por aquilo que é correto.