Enviado Especial
Chapecó - SC
Eram nove horas da noite de 29 de junho de 2016. Eu e meu pai nos sentávamos no sofá para assistir mais um jogo juntos. Grandes clássicos do futebol mundial ou a segunda divisão do Vietnã. Não importava qual partida, de qual país, boa ou ruim, sentávamos e assistíamos. Eu reclamo quando o nível técnico é péssimo, mas continuo assistindo até hoje. Ele, por outro lado, se cansava quando a peleja dava sono ou se entregava ao cansaço e aproveitava o sofá de uma forma melhor.
Naquela noite, porém, era um jogo bom. Iríamos assistir Chapecoense x Cruzeiro.
"Biel, a Chape tá bem esse ano, né? Acho que vão vencer o Cruzeiro em casa. Eu tenho gostado muito de ver esse time, está jogando muito bem e manteve o bom nível do ano passado", ele me disse antes do jogo começar.
"Pois é, pai, eles estão jogando muito bem mesmo. Fico feliz porque ano passado já surpreenderam e escreveram aquela história bonita na Sul-americana", lembrei, me referindo ao belo papel no torneio continental, com a Chape sendo eliminada apenas pelo gigante River Plate, nas quartas de final.
"A Chapecoense está sendo tipo o Leicester, né, Biel. Acho que vão fazer uma história tão bonita quanto eles", profetizou papai.
Abre parênteses.
O Leicester tinha ganho um significado especial para nós. Eu e meu pai assistimos cada episódio daquela história espetacular e inspiradora do título inesquecível da Premier League. Nos emocionamos juntos várias e várias vezes. Graças aos Foxes escrevi alguns dos melhores textos, a maioria deles lida e muito elogiada pelo meu pai, meu maior crítico, que questionava e apontava os erros sempre que necessário, mas também elogiava quando era merecido.
Meu pai lutava e vencia um câncer enquanto o Leicester escrevia aquela história magnífica.
Para nós, talvez só para mim, o Leicester foi - e até hoje é - algo muito especial para mim. Não apenas pelo conto de fadas, por tornar o impossível possível, fazer algo inimaginável no futebol atual e ressuscitar a magia e beleza do esporte em uma era de escândalos de corrupção e na qual a essência, pouco a pouco, se perde. Para mim, os Foxes também eram uma inspiração. Tudo era possível e poderia ser vencido. Até um câncer.
E mais do que isso, o Leicester tinha se tornado o segundo time tanto meu quanto do meu pai. Vivemos momentos muito felizes vendo aquela história fantástica ser escrita, a celebrando depois e sempre comentando os jogos e os textos que eu escrevia.
Fecha parênteses.
Eu e meu pai assistimos aquele bom jogo entre Chapecoense e Cruzeiro. Bom tecnicamente e excepcional na emoção. Pisano abriu o placar para a Raposa, mas a Chape virou com Silvinho e Arthur Maia, uma das vítimas da tragédia de um ano atrás. O time mineiro empatou aos 39 minutos do segundo tempo com Fabrício Bruno, curiosamente, hoje jogador do Verdão. No entanto, era mesmo o dia da equipe de Santa Catarina. Aos 44', Kempes, outra vítima do acidente, decretou a vitória dos mandantes na Arena Condá.
Foi uma partida emocionante que deixou eu e meu pai muito felizes.
Mas eu não imaginava que seria a nossa última partida.
Ainda dói escrever isso.
Eu perderia o meu pai em 1º de julho, depois de um dia inteiro de angústia com minha mãe no hospital. O céu, esse egoísta, tomava mais uma de suas mais belas estrelas para brilhar ainda mais.
Depois disso, o futebol perdeu um bocado de magia para mim.
Fiquei um tempo sem conseguir assistir um minuto sequer de qualquer jogo. Era tempo de uma mágica Eurocopa na França. Eu, que tinha visto vários duelos com meu pai, não quis ver a fase final. Tentei, mas não conseguir. O máximo foram os momentos finais da decisão, chorando e sendo consolado por um dos meus tios.
Meu pai, afinal, é responsável por tudo o que sou. Minha paixão, que é o meu sustento por meio de palavras, é por causa dele. Meu jeito de ser, meus gostos. Tudo o que sou é por dele.
Até hoje é duro e sempre será não ter mais ninguém ao lado no sofá comentando as partidas. Não ter mais ninguém elogiando e criticando meus textos e vídeos. O telefone não toca mais com a pergunta "você viu?" em seguida. As interrogações sobre as novidades e os bastidores, e os pedidos de análises também acabaram. Não tem mais ninguém ao lado para abraçar e celebrar um gol, um belo passe, um drible mágico ou um lance espetacular. O sonho de estar com o pai e o filho no estádio também não vai ser realizado.
Dói muito olhar para o lado e não poder fazer nada disso. Nada é pior que isso.
No entanto, justamente a Chape, o último time que vi em ação com meu pai, me faria recuperar aquele encanto. E na Copa Sul-americana, que eu e meu pai tínhamos comentado meses antes.
O maior campeão da Libertadores. Quatro defesas de pênalti. Um dilúvio sem precedentes. Uma atuação mágica. O time do papa. Uma defesa divina no último lance. O melhor time da América em 2016 no caminho de uma final épica e inédita.
Um a um, a Chape foi derrubando gigantes e escrevendo uma história da qual era impossível não se emocionar.
Inevitavelmente, eu me lembrei do Leicester. "Eles conseguiram e a Chape também vai", eu pensava.
Na manhã de 28 de novembro eu falei com alguns jogadores e dirigentes antes do embarque deles rumo ao maior jogo da história da Chape. Uma das várias perguntas que fiz foi sobre uma possível inspiração no Leicester. Eu já pensava em textos bonitos para o dia seguinte, antes da final, e imaginava as entrevistas que faria depois do Verdão se sagrar campeão da Sul-americana. Já sonhava com várias pautas bonitas, emocionantes e em contar belas histórias. Já combinava de viajar com o amigo e companheiro de Goal Brasil, Fernando Henrique Ahuvia, para acompanhar a partida de volta da decisão.
No entanto, veio mais um dia 29. Eu não pude realizar nada disso, e isso acabou comigo.
Foi o segundo pior e mais longo dia da minha vida.
Doeu demais. Por tudo o que a Chapecoense representava e representa. Pelo meu pai. Pelas lembranças. Por conhecer e ter conversado com algumas das vítimas. Dói até hoje.
Escrever sobre a Chape foi complicado e ainda é. Elogiaram meus textos, mas até hoje não me convenço. Nada será suficiente e estará no nível que os 71 merecem.
No entanto, o Verdão conseguiu algo incrível. O sonho virou pesadelo, mas a Chape nos contagiou, empolgou, encantou, emocionou e uniu. Todos nos abraçamos. Todos choramos. Todos somos e queremos ser Chape. Como o Leicester, a Chape nos mostrou que o inacreditável é possível.
Um ano depois fui enviado pela 'Goal Brasil' à Chapecó. Acompanhei a Chape de perto, entrevistei sobreviventes, jogadores do elenco atual, personagens históricos do clube, torcedores e conheci e contei histórias fantásticas. Logo entendi porque a Chapecoense é um clube tão diferente dos outros. Me emocionei muito e senti meu pai o tempo todo comigo.
Espero ter contado todas as histórias da forma como elas merecem ser contadas.
A dor continua e continuará para sempre. A gente segue em frente convivendo com ela, com a perda e a saudade. Alguns dias melhores e outros piores. Todos difíceis.
Mas a gente continua, e continua também pelas estrelas que estão no céu egoísta, deixando ele ainda mais brilhante e bonito e nos guiando, mostrando que a magia ainda existe e sempre irá existir, e que o impossível pode sim se transformar em lindas histórias.